Havia uma garoa fraca no ar quando eu saí para o amplo e branco cais que marca a divisa do Waterbuurt, o bairro flutuante de Amsterdã, na Holanda.
Apesar da ameaça de chuva, os moradores, que vivem em casas compactas de três andares boiando num pequeno lago na parte leste da capital holandesa, estavam ocupados aproveitando a tarde.
Uma mãe e sua filha balançavam varas de pescar da janela de sua cozinha, enquanto dois meninos pulavam na água, revezando-se em um balanço pendurado em uma ponte. Ao longo da cerca do cais, estavam bancos, bicicletas e churrascos, separados a cada dez metros por uma brilhante boia salva-vidas laranja.
Na minha visita a esta comunidade semiaquática única, fui guiado por Ton van Namen, cuja empresa, Monteflore, idealizou o projeto.
Mas, em vez de falar de forma entusiasmada sobre o sucesso desse empreendimento inovador, que agora conta com cem residências, Van Namen estava mais interessado em discutir a aparentemente infindável lista de problemas enfrentados durante sua criação.
Questões que certamente já foram causa de grande frustração eram agora aparentemente motivos de piada.
“Ah, então havia a questão do plano de zoneamento”, disse Van Namen enquanto caminhávamos no cais, com a brisa da tarde mexendo as mangas de sua camisa azul e pontas de seu longo cabelo branco.
“Alguém escreveu que todas as casas deveriam ficar a uma certa altura do nível da rua. Mas, claro, aqui as casas sobem e descem.”
Ele soltou tamanha gargalhada que a mãe e a filha, com suas varas de pescar, deram uma olhada, incomodadas com a perturbação de sua calmaria sobre a água.
Faz sentido que a Holanda seja a nação que esteja experimentando com a ideia de casas flutuantes, considerando a tradição verde do país e sua história de arquitetura e desenho inovadores.
O país também é o que fica no nível mais baixo da Europa, o que faz com que a elevação do mar represente uma ameaça real. Porém, os holandeses não estão fazendo experiências apenas com casas flutuantes.
Cinquenta e cinco quilômetros ao sul de Amsterdã, Minke Van Wingerden liderava seu rebanho de vacas por uma passagem até os modernos estábulos, próximos a gigantes petroleiros e navios de carga sobre as águas do porto de Roterdã.
“Na noite passada, [as vacas] vieram, eu não dormi a noite toda”, disse ela, segurando um monte de feno para uma das vacas de manchas marrons saborear. “Mas foi tão tranquilo. Elas logo se acostumaram a estar sobre as águas.”
A ideia de uma fazenda flutuante nasceu depois que o companheiro de Van Wingerden, Peter, testemunhou o impacto que o furacão Sandy teve sobre as ligações de transporte e as redes de abastecimento de Nova York em 2012, percebendo como as prateleiras dos supermercados de Manhattan continuavam vazias dias depois do desastre.
Ao voltar para a Holanda, ele e Van Wingerden decidiram criar uma fazenda que seria adaptada às mudanças climáticas.
Sua fazenda, que foi inaugurada em 2019, tem 40 vacas, que circulam entre um pasto ao lado das docas e uma estrutura flutuante, a primeira do tipo no mundo.
A fazenda produz leite, queijo e iogurte (assim como adubo), que são transportados por distâncias curtas até os consumidores por meio de bicicleta ou van elétrica.
Enquanto isso, sobras vindas da cidade servem de alimentos para as vacas, de restos de comida de restaurantes a grama que sobra do estádio do clube local de futebol, o Feyenoord.
“Nossa localização nos permite produzir e vender comida saudável aqui mesmo na cidade, de uma forma bastante sustentável”, diz Van Wingerden, que também tem ideias para uma fazenda flutuante de vegetais e mesmo uma granja. “Acredito que exista um grande futuro para fazendas flutuantes.”
Vendo o sucesso de pessoas na Holanda em tanto viver como produzir numa fazenda sobre as águas, vem a pergunta se em breve veremos cidades inteiras flutuantes.
Apoiada pela Organização das Nações Unidas (ONU), a empresa americana Oceanix está liderando uma iniciativa envolvendo habitações humanas flutuantes de grande escala, atualmente desenvolvendo o que descreve como “a primeira comunidade flutuante resiliente e sustentável do mundo, para 10 mil moradores em 75 hectares”.
“Em relação à elevação do nível do mar, autoridades locais de cidades costeiras têm basicamente duas opções”, diz o presidente da Oceanix, Marc Collins Chen. “Construir uma grande muralha, que provavelmente nunca será alta o suficiente, ou olhar para a última novidade em engenharia, que é flutuar sobre um lugar.”
Embora chamado de “cidade flutuante”, o que a Oceanix está propondo, pelo menos inicialmente, é mais no sentido de grandes bairros flutuantes, expansões aquáticas para megacidades litorâneas já superpovoadas que enfrentam dificuldades com o aumento do nível do mar, como Jakarta, na Indonésia, ou Xangai, na China.
Essas novas “cidades” serão compostas de plataformas triangulares de dois hectares de área, boiando, cada uma abrigando 300 moradores, com espaço adicional para produção agrícola e lazer. Elas podem ser ligadas umas às outras, formando assentamentos cada vez maiores.
“Estamos construindo uma infraestrutura que é capaz de lidar com eventos climáticos extremos e também é altamente sustentável”, disse Chen.
“Queremos que esses assentamentos não usem nenhum combustível fóssil. É tudo com energia renovável, e estamos tentando cultivar 100% de nossas necessidade proteicas a bordo.”
Parece impressionante, mas será que vamos ver essas expansões urbanas flutuantes se tornando realidade?
“Já está acontecendo”, diz Chen. “Nós veremos um protótipo flutuante nos próximos anos, estou muito confiante.”
Cidades flutuantes podem parecer algo vindo direto de páginas de livros de ficção científica, mas na verdade nós, humanos, temos vivido e cultivado alimentos em ambientes flutuantes há séculos.
“Nós compilamos uma lista de 64 casos para estudo de comunidades indígenas flutuantes ao redor do mundo”, diz Julia Watson, professora de Design na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e autora de Lo-Tek: Design by Radical Indigenism, livro que explora lições de design que podemos aprender com culturas indígenas.
“Mais que isso, esses sistemas indígenas sempre foram inerentemente sustentáveis, algo que nossas cidades atualmente não são.”
Exemplos de comunidades flutuantes ainda podem ser encontrados hoje em dia, como as ilhas de cultivo de cana do povo Uru no lago Titicaca, na fronteira entre Peru e Bolívia.
Jardins flutuantes são ainda mais comuns, notadamente em Bangladesh, onde agricultores plantam sementes em espécies de jangadas feitas de plantas flutuantes, que sobem e descem conforme as cheias que ocorrem devido às monções anuais.
De certa forma ironicamente, foi a construção de grandes cidades que levou ao desaparecimento de muitas dessas habitações e práticas aquáticas, que agora estão sendo cogitadas como o futuro da vida urbana.
“Na Europa e na China, o desenvolvimento de cidades e o aterramento de mangues e lagos infelizmente eliminaram muitas dessas tecnologias”, diz Watson.
De volta a Amsterdã, Van Namen estava debatendo outro problema quando estávamos no final do principal cais de Waterbuurt, observando um dos moradores usar uma prancha para ir de uma casa flutuante à outra.
“As casas duplas flutuantes [duas casas geminadas] nos deram bastante dor de cabeça. Especialmente no começo, quando uma estava ocupada, e a outra não”, disse ele, abrindo um sorriso forçado.
“Agora, um lar normal tem aproximadamente uma tonelada de coisas dentro dela, então, você pode imaginar que havia muitas dessas casas duplas que pareciam um pouco… desequilibradas.”
Van Namen levantou o braço num ângulo de 45 graus para ilustrar seu ponto, antes de bater com a mão em seu joelho ao se lembrar do problema.
Enquanto voltávamos ao longo do cais para a terra firme, eu estava interessado em descobrir se Van Namen, que experimentou as aparentemente múltiplas dificuldades de trabalhar com arquitetura flutuante, acha que essas estruturas estão destinadas a se tornar parte do nosso cotidiano.
“É possível. Há várias cidades no mundo com marinas e portos onde você pode realizar um projeto mais ou menos como este”, disse ele, lembrando que as casas aqui se provaram populares entre os moradores e que o empreendimento gerou interesse de autoridades municipais e escritórios de arquitetura mundo afora.
“E, claro, com todos os problemas que temos que a elevação do nível das águas, isso pode ser uma solução”, acrescentou.
Então ele fez uma pausa. “Não é a verdadeira solução, claro”, afirmou ele, fazendo agora uma expressão séria, pouco característica. “A solução é impedir que os níveis do mar aumentem.”
Infelizmente, esse é um problema que nem mesmo Van Namen pode resolver.
FONTE: Por BBC NEWS