Os donuts foram levados aos EUA por colonos holandeses e viraram um adorado doce nacional – apesar de seu passado como comida para situações de privação.
Existe um lugar delicado, na maioria dos corações, reservado para os donuts (em inglês, doughnut): a textura fofa, o revestimento crocante e brilhante, a doçura tão doce que poderia até fazer você abandoná-los, mas não faz, pelo menos não por muito tempo. Em padarias, o brilho amarelo quente de bandeja sobre bandeja de donuts recebeu muitos fregueses matutinos e aliviou o estresse de muita gente. Eu me lembro com gosto dos doces cobertos com xarope de bordo (maple) na vitrine da loja na minha cidade, e muita gente também tem alguma sugestiva memória ligada ao donut.
Massa frita é um vício bem antigo. Provavelmente tem feito parte do cardápio desde que uma farinha foi moída pela primeira vez, e grandes quantidades de gordura animal ou óleo estiveram à mão. Mas os donuts, como normalmente os imaginamos hoje em dia, são uma comida relativamente jovem. A versão norte-americana, conhecida por esse nome em lojas mundo afora, parece ter suas origens nas décadas da Revolução Americana, quando um doce holandês ganhou uma nova identidade.
Ao ler histórias sobre o donut, você pode se surpreender ao descobrir que sua confecção é há tempos marcada pelo nacionalismo. Ao mesmo tempo em que a nova nação dos Estados Unidos tentava encontrar seu lugar no mundo, seus cidadãos tentavam identificar o que era essencial a respeito do país – sobre sua literatura, seu caráter nacional, sua cozinha. Isso significou que escritores e comentaristas olhavam para trás na (relativamente curta) história da nação com uma espécie de nostalgia misturada com bravata.
Antes de Nova York ser Nova York, claro, a cidade era Nova Amsterdã, e escritores sempre refletiram sobre os costumes holandeses de eras anteriores com uma doce afeição. Um desses costumes era a confecção de bolas de massa fritas, conhecidas como oliekoecken, ou tortas de óleo. Uma receita dessas delícias aparece num livro de receitas holandês do século 17: elas são fermentadas e cravejadas com frutas secas.
Folclore do donut
Uma das primeiras menções de donuts em textos americanos veio de Washington Irving, escritor e diplomata, mais conhecido pelas obras The Legend of Sleepy Hollow (A Lenda de Sleepy Hollow) e Rip Van Winkle. Em seu Knickerbocker’s History of New York (A História de New York por um Nova-iorquino), de 1809, ele passa um bom tempo falando sobre pitorescas tradições folclóricas américo-holandesas, descrevendo as “primitivas festas de chá” de um passado não muito distante:
“Essas festas, muito na moda, eram geralmente limitadas às classes mais altas, ou ‘noblesse’: ou seja, eles mantinham suas próprias vacas e dirigiam suas próprias carroças”, escreveu ele, com uma mistura de sentimentalismo e condescendência. “Certamente sempre ostentariam um prato enorme de bolas de massa adocicada, frita em gordura de javali, e chamados donuts ou olykoeks – um delicioso tipo de torta, no momento mal conhecida nesta cidade, com exceção de genuínas famílias holandesas.”
Identificar o donut como uma comida simples e folclórica fez dela mais que uma sobremesa – deu-lhe a cor de uma delícia americana autêntica (o nome, por falar nisso, como conta Jon Townsend do canal 18th Century Cooking, no YouTube, pode ter derivado da confecção já bem estabelecida chamada ginger nuts, que são cookies pequenos e arredondados do tamanho de nozes (nuts, em inglês). Os donuts são pequenas bolas de massa (dough, em inglês), então eles são “nuts”).
As fantasias de singela bondade em torno dos donuts continuaram. Mais de 50 anos depois que Irving escreveu sobre eles, os donuts atingiram seu moderno formato circular – mas os verdadeiros como e por que dessa transformação perderam-se ao longo tempo, enterrados por uma história envolvendo um marinheiro da Nova Inglaterra e sua mãe. Uma versão dessa lenda diz que a mãe de Hanson Gregory preparou donuts para suas viagens, e ele cravou em uma das alças do timão para comer durante uma tempestade, mas existem quase infinitas variações.
Talvez não seja necessário olhar além da ciência material do próprio donut para entender sua perfuração no centro: um bloco de massa molhada jogada no óleo fervente ainda estará crua no centro depois que a parte de fora já está cozida. Mas, se você insiste em ter um doce de tamanho grande, um buraco no centro ajudará a garantir que ele esteja igualmente cozido por inteiro.
A cultura dos barcos baleeiros da Nova Inglaterra também envolveu o que provavelmente foram donuts levemente suspeitos. Com enormes quantidades de gordura de baleia no barco, depois de uma captura e muitos tonéis à disposição, fritar era a coisa lógica a fazer, relata Michael Krondl em seu livro The Donut: History, Recipes, and Lore from Boston to Berlin (O Donut: História, Receitas e Tradições de Boston a Berlim).
“Homens cantando e gritando Donuts”, escreveu Mary Brewster, que estava a bordo de um baleeiro em 1845 quando uma baleia foi capturada. No dia seguinte, ela escreveu: “Nesta tarde, os homens estão fritando donuts… e parecem estar adorando, alegres”.
Gosto de casa
O folclore dos donuts pode ter atingido seu auge com as garotas donuts da Primeira Guerra Mundial, voluntárias do Exército da Salvação que fritavam donuts para tropas americanas. Centenas de milhares deles foram distribuídos próximo às trincheiras, e há inúmeros cartazes e tributos à devoção dessas mulheres para levar um gosto de casa aos soldados. A imagem do Exército da Salvação também foi elevada.
Quando a guerra acabou, “seu escolhido totem, o donut, foi um arraigado símbolo de casa”, escreve John T. Edge em seu livro Donuts: An American Passion (Donuts: Uma Paixão Americana).
Mas, para pelo menos uma garota donut, o prazer do doce havia acabado. Helen Purviance, que segundo relatos fritou 1 milhão de donuts durante a guerra, foi entrevistada pelo jornal The New York Times em um evento do Exército da Salvação, para levantar fundos, em que ela preparou donuts no hotel Savoy. “Miss Purviance contou que não gostava do trabalho de cozinhar donuts”, disse a reportagem. “Ela disse que ela passou a associar o ato de fritar donuts com os ‘horrores da guerra’.” “Não existe glória na guerra”, disse ela à reportagem.
De fato, apesar de toda a alegria que o donut traz, fritar uma massa é algo que você faz quando você não tem mais nada melhor – num navio baleeiro, por exemplo, ou numa trincheira enlameada. (Numa história mais conhecida, o pão frito dos americanos nativos ganhou destaque como uma comida da adversidade; ele era feito por pessoas arrancadas de suas casas, de forma horrível, por políticas dos Estados Unidos de reassentamento).
O donut da loja moderna pode estar embrulhado numa narrativa de deleites simples. Mas a massa frita é uma confortadora de almas, em circunstâncias de sofrimento ou outras, por todo o mundo. Olhe além das opções comuns, e você encontrará um donut em praticamente toda cultura, cada uma delas com suas próprias histórias, seus próprios romances, seus próprios devotos que lhe contarão exatamente o que faz um donut ficar bom.
FONTE: Por BBC NEWS