“Talvez nunca — nem antes nem depois — os palcos nacionais tenham assistido a uma explosão visual, sonora e gestual tão virulenta, como esta que inaugurou no Brasil o ‘Teatro da agressão’, ou ‘Teatro da grossura’, ou ‘Teatro da porrada’. A peça não só agredia o público ‘intelectualmente, formalmente, sexualmente, politicamente’, conforme queria o próprio diretor — como contestava as formas e propostas artísticas anteriores, em especial as da esquerda tradicional”.
“José Celso se insurgia contra o que chamava de ‘ditadura da classe média’ e contra o teatro ‘reformista’, que procurava ‘conscientizá-la’. Ele achava que aqueles devoradores de ‘sabonetes e novelas’ tinham que ‘degelar na base da porrada’.”
Assim Zuenir Ventura definiu a peça teatral “Roda Viva” em seu livro “1968 – O Ano que não Terminou”.
A obra, escrita por um jovem artista em ascensão chamado Chico Buarque, foi montada por um grupo de atores dirigidos por Zé Celso Martinez Corrêa, reunidos sob o Teatro Oficina Uzyna Uzona, ou apenas Oficina.
O grupo foi criado de forma amadora por dois estudantes da Faculdade de Direito, no Largo de São Francisco, em São Paulo: o hoje ator Renato Borghi e Zé Celso.
Juntamente com Fauzi Arap, Carlos Queiroz Telles, Amir Haddad, Moracy do Val, dentre outros, eles encenaram suas primeiras peças: “Vento Forte para um Papagaio Subir” (do próprio Zé Celso) e “A Ponte” (escrita por Telles). A fase amadora do Oficina durou apenas três anos. A boa recepção das primeiras montagens e a empolgação do grupo culminaram na aquisição de uma sede própria, em 1961.
Encantaram-se por um prédio antigo na Rua Jaceguai, no Bixiga, em São Paulo. No local funcionava o Teatro Novos Comediantes.
Depois de uma primeira reforma comandada pelo arquiteto Joaquim Guedes, surgiu a primeira grande inovação formal do teatro: o palco no meio e nas laterais, duas arquibancadas para a plateia.
Hoje, tal estrutura pode parecer trivial, mas era uma radicalização tanto ao tradicionalismo grego e seus teatros de arena (com o palco num declive e o público num plano mais elevado, num semicírculo) como ao teatro elisabetano, que se se tornaria a forma mais atualmente mais popular — o palco bem delimitado em um plano elevado e o público em frente a ele, sentado ou em pé mesmo.
No Oficina, as montagens têm de ser feitas para serem vistas, apreciadas e compreendidas por ambos os lados da plateia. Na prática, isso significa mais movimento, mais intensidade, com os atores se movendo constantemente de um lado para outro.
Para o crítico teatral Dirceu Alves Jr., o Oficina “já nasceu conectado com o mundo, fazendo um teatro brasileiro com um olhar internacional, antenado com o que acontecia lá fora”.
Mesmo encenando textos clássicos estrangeiros — como “Pequenos Burgueses”, de Máximo Gorki, que foi aos palcos em 1963 —, a trupe “imprimia conexões com o Brasil, atualizava o texto e a montagem”, diz Alves Jr.
A primeira grande consagração viria com a anárquica e tropicalista montagem de “O Rei da Vela”, em 1967. Escrito em 1933 por Oswald de Andrade, na mão de Zé Celso, o texto se transmutou com insubordinações formais e conceituais para se adequar ao contexto político do país, que vivia sob uma ditadura militar.
Assim como muita gente que não concordava com o regime, Zé Celso e o Oficina radicalizaram após o golpe de 1964. Meses depois de sua estreia, a montagem que tinha no elenco Renato Borghi, Dina Sfat, Othon Bastos e Otávio Augusto foi censurada e proibida. Apesar disso (ou também, por causa isso), a peça deu notoriedade internacional ao Oficina, com convites para apresentações na Europa.
No ano de 1968, a trupe do Oficina encenou “Roda Viva”, um marco na história do teatro brasileiro. A peça foi primeiramente encenada no Rio de Janeiro, no Teatro Princesa Isabel.
Logo após a estreia, Yan Michalski, um dos mais importantes críticos teatrais da época, escreveu no “Jornal do Brasil”, o mais influente diário de então: “Nunca vi um público mais desorientado e perdido do que o fã clube de Chico Buarque de Hollanda que lotava completamente o Teatro Princesa Isabel.”
Quem esperava um musical com músicas do jovem cantor em ascensão, testemunhou “um happening, uma espécie de ritual pagão de um diretor desconhecido”.
Em São Paulo, o local escolhido para abrigar “Roda Viva” não foi a sede do Oficina, mas o Teatro Galpão, também no Bixiga. Atualmente a casa é o teatro Ruth Escobar.
No dia 19 de julho de 1968, pouquíssimo tempo após a estreia na capital paulista, a “Folha de S. Paulo” publicou a seguinte notícia: “No final da encenação da peça “Roda Viva”, o teatro Galpão – rua dos Ingleses, 209, foi invadido por cerca de vinte elementos armados de cassetetes, soco-inglês sob as luvas, que espancaram os artistas, sobretudo as atrizes, depredaram todo o teatro, desde bancos, refletores, instrumentos e equipamentos elétricos até os camarins, onde as atrizes foram violentamente agredidas e seviciadas.”
Os invasores eram do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), grupo paramilitar ligado ao governo ditatorial, e uma das atrizes mais agredidas foi justamente a protagonista Marília Pêra, que teve de ser levada ao hospital com escoriações e hematomas.
Em setembro do mesmo ano, na temporada em Porto Alegre, os atores foram agredidos no hotel onde estavam hospedados e a peça foi censurada. O Teatro Oficina, com suas peças contestatórias, radicais e libertárias, era oficialmente uma grande pedra no sapato da ditadura.
Anos depois, em 1974, o diretor Zé Celso foi preso à revelia de um mandado de prisão. No cárcere, foi torturado por dias, mas a pressão exercida pela sociedade e classe artística funcionou, e ele foi libertado. Pouco depois, ele se exilaria na Europa, de onde voltaria apenas em 1979, já no contexto da anistia aos perseguidos políticos.
“O melhor teatro do mundo”
Após o retorno do exílio, Zé Celso e o Oficina se recolheram na década de 1980, voltando-se mais para a pesquisa e cursos de formação.
A morte do irmão de Zé Celso, o também diretor teatral Luís Antônio Martinez Corrêa, em 1987, abalou muito o líder do Oficina. Aos 37 anos, Luiz Antônio, vítima de homofobia, foi brutalmente assassinado com mais de cem facadas dentro do seu apartamento, no Rio de Janeiro.
O Oficina passou por uma grande reformulação no início dos anos 1990. A partir de um projeto arquitetônico com a assinatura de Lina Bo Bardi, que também projetou o Masp (Museu de Arte de São Paulo) e o Sesc Pompéia, e Edson Elito, o local ganhou as feições atuais. Amplas janelas de vidro contribuem, de dia, para a iluminação natural e, de noite, para a ambientação das peças.
Muitas vezes, as árvores no terreno ao fundo do teatro ajudam a compor uma cenografia viva, orgânica, que balança com os ventos. A plateia foi acomodada em uma arquibancada de três andares que se assemelha a um andaime de obras.
O palco virou uma passarela, uma longa faixa horizontal formada por tábuas de 1,5 metro, ao nível do chão. Ao centro do palco, os arquitetos conceberam mais um elemento inusitado: uma cachoeira artificial composta por sistema que deságua num espelho d’água, se retroalimentando.
Inaugurado em 1994, dois anos após a morte de Lina Bo Bardi, o novo Oficina ganhou um impulso definitivo, atraindo grandes públicos e com montagens de sucesso, como “Mistérios Gozosos à Moda de Ópera” (1994), “Bacantes” (1995), “Cacilda!” (1998) e outras.
Nos anos 2000, junto com o sucesso da trilogia “Os Sertões” (entre 2002 e 2003), emergiu a disputa entre o Teatro Oficina e o dono do terreno atrás de sua sede, Silvio Santos .
O projeto original de Bo Bardi já previa um parque atrás do teatro, um espaço contemplativo público, mas integrado à vida cultural do Oficina.
Silvio Santos, no entanto, tem um projeto para construir três grandes torres com imóveis comerciais e residenciais. O prédio do teatro é tombado e não pode sofrer alterações em seu projeto sem passar pelo aval de órgãos regulatórios.
A disputa já teve diversas idas e vindas, com brigas públicas e judiciais e ainda não há um consenso sobre a destinação do terreno.
Em 2015, o jornal britânico “The Guardian” elegeu o projeto arquitetônico do teatro como o “melhor do mundo” em sua categoria.
Um espaço longo e estreito como uma rua em uma envoltória queimada de um antigo teatro que é assistido por galerias construídas com andaimes
“O Teatro Oficina tem ângulos de visão desafiadores, assentos duros e uma forma que é exatamente a que os teatros não deveriam ter, mas é tanto mais intenso precisamente por isso”, prossegue o texto.
Pela passarela do Oficina já passaram nomes como os já citados Marília Pêra, Renato Borghi, Dina Sfat, Othon Bastos e Otávio Augusto; além de Marieta Severo, José Wilker, Rosamaria Murtinho, Tarcísio Meira, Augusto Boal, Fernanda Montenegro, Marieta Severo, Zezé Motta e, mais recentemente, Leona Cavalli, Bete Coelho e Raynaldo Giannecchini.
Há exatamente um mês atrás, em 6 de junho, o diretor Zé Celso se casou com o seu companheiro de mais de 35 anos, Marcelo Drummond. A festa, claro, foi no Teatro Oficina e marcou a passagem de bastão diretor e fundador da trupe para Drummond, que também é ator e diretor.
Zé Celso Martinez Corrêa morreu nesta quinta-feira aos 86 anos, vítima de um incêndio em seu apartamento, ocorrido na madrugada do dia anterior.
O maior importante diretor e criador do teatro brasileiro foi levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos. Antes de morrer ele estava se dedicando à peça “Mutação de Apoteose”, adaptação da obra “A Queda do Céu”, do xamã ianomâmi Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert.
“Apesar da morte trágica, ele morreu criando, trabalhando, com energia. Ele detestaria ficar preso numa cama”, opina Dirceu Alves Jr. “Morreu pelo fogo, mas não acho que ele se sentiria como uma bruxa da Inquisição”, completa.
As fogueiras são parte integrante dos rituais xamânicos ianomâmis que invocam os xapiri, espíritos protetores da floresta. Zé Celso certamente invocou seus xapiri para cuidar do Teatro Oficina. Seu teatro e seu legado se renovam e sobrevivem.
FONTE: Por CNN