Os realities shows de relacionamento não são um fenômeno novo. A jornada começa lá nos programas de auditório, como o americano “The Dating Game”, de 1965. Passa por “Em nome do amor”, de Silvio Santos, e correlatos, até que se unem à explosão dos realities shows no fim da década de 1990.
O formato pode até mudar, seja para quem quer um casamento ou para curtição de férias. O que não muda, no entanto, é o público interessado em acompanhar esses casais se desenrolarem no campo afetivo.
“O sucesso de realities de relacionamento vem de muitas décadas, com vários exemplos na TV aberta e paga do Brasil e do mundo. Esses formatos evoluíram, com a própria TV e a forma de consumir conteúdo, chegaram ao streaming e geram um enorme engajamento”, contextualiza Teresa Penna, diretora do Globoplay e de Produtos Digitais Audiovisuais, em entrevista ao g1.
Nas duas últimas décadas, a gente acompanhou, por exemplo:
- Solteirões sendo disputados por dezenas de mulheres em “The Bachelor”;
- Uma turma mais jovem que quebrava a cabeça para encontrar seu par em “Are you the one?”;
- Solteiros interessados na azaração dispostos a cruzar com o ex em “De férias com o Ex”
- Amigos desapegados palpitando em qual seria o “match” ideal em “Túnel do amor”;
- Pretendentes conversando sem se ver em busca de um “Casamento às cegas”.
Para além destes, ainda tem novidade na área. Depois de “Túnel do amor”, o Globoplay aposta ainda em mais um reality, desta vez mais romântico.
No “Let Love”, que tem estreia prevista para o segundo semestre deste ano, um grupo de solteiros vão deixar os aplicativos de relacionamento de lado para tentar encontrar o amor verdadeiro.
“Eles oferecem uma opção de entretenimento leve, que mistura humor, suspense, drama e romance. Há um aspecto de voyeurismo e de competição, que instiga a curiosidade das pessoas e gera conversa entre grupos de amigos, já que as decisões dos participantes representam tendências sociais, refletem a maneira como as pessoas lidam com relacionamentos em diferentes contextos”, diz Teresa.
O g1 conversou com especialistas em psicologia e em sociologia para entender por que a gente se envolve tanto em realities shows de relacionamento e acompanha casais que sequer conhecemos.
A tal da espiadinha
O brasileiro tem sim uma queda por realities shows, mas não é exclusividade nossa. Segundo o psicanalista Pedro de Santi, professor de Ciências do Consumo da ESPM, o ser humano tem curiosidade em saber da vida privada do outro, principalmente de figuras públicas.
“A separação do público e privado é um tema que vem lá do século 17 e 18. No século 18, virou moda a literatura de diários íntimos e troca de cartas, porque davam ao leitor a sensação de estar invadindo, tendo acesso finalmente ao mundo privado.”.
A psicanalista Maria Virgínia Cremasco, professora titular do departamento de psicologia da Universidade Federal do Paraná, ainda aprofunda: o ser humano quer saber e tem mais vontade ainda de saber sobre temas considerados tabus, como a sexualidade.
“Tem alguns temas específicos que despertam uma vontade de saber meio que geral. E o tema dos relacionamentos que envolvem afetividade, emoções, paixões, sexualidade, é comum do humano de vontade de saber desde quando o humano é humano.”
A busca pelo amor
Ainda que os programas sejam diferentes – eles podem ser focados no início de um namoro, durante um casamento, ou apenas na paquera sem compromisso -, os relacionamentos e como eles se dão são o foco dos realities.
“O fato de representar o laço amoroso, o relacionamento sexual, a realização de vida ou a promessa de realização, é algo que captura todo ser humano”, diz a professora Maria Virgínia, da UFPR.
“O relacionamento [amoroso] é, obviamente, o sonho de quase todo mundo. É uma das grandes questões da vida”, diz Santi, da ESPM. “A vida amorosa, amar ser amado, conseguir uma boa parceria, é uma fantasia que todo mundo da briga de uma forma de outra.”
O psicanalista explica ainda que a dinâmica dos programas ainda ajuda o público a projetar seu desejo de relacionamento, seja um existente, que está bem ou não, ou um casamento longo, um início de namoro.
“Eu posso projetar isso, e acrescentaria também o sadismo de ver as trapalhadas que isso gera, a decepção, de ver de longe o sofrimento do outro para dar risada.”
Fantasia
A partir dos enredos apresentados pelos realities shows, o público acaba “vivendo” junto o romance (ou o fim dele) assim como projeta a própria vida. E é o que também acontece quando assistimos a um filme ou a uma série.
“É como se fosse um sonho que sonham para a gente. Vivemos através dessas situações de arte e de entretenimento. A gente vive aquilo que não vive na vida real”, explica Santi.
Segundo ele, quando o telespectador “maratona” uma série e não vê o tempo passar, ele perde o distanciamento, vive aquilo como se fosse ele próprio e ocorre o que se chama de “catarse”.
“É uma descarga intensa de emoção, como o teatro grego já buscava. E qualquer obra, hoje, só vai fazer sucesso se for capaz disso: o espectador ser capaz de identificar e viver emoções mediadas por uma obra de arte, sem culpa e responsabilidade, porque não está envolvido de verdade.”
Desta forma, de acordo com o psicanalista, as situações colocadas nos realities, com pessoas carismáticas e influenciadores, permitem que o espectador projete as próprias fantasias que não pode realizar e viva através deles.
Para ele, é importante que tenhamos esses meios simbólicos para viver essas emoções que não podem ser experimentadas na vida real.
“Eu posso ver um filme de luta sem bater em ninguém e sem apanhar. Ver um filme de Quentin Tarantino, descontar toda a minha raiva simbolicamente, e ser um cara tranquilo fora do cinema. Ou me acabar de chorar em um filme romântico, pensando nas minhas mágoas através daquele filme, sem estar exposto.”
“Nós somos frustrados pelo mundo, essa frustração gera agressividade, a gente não tem muitos caminhos para queimar essa agressividade. Que bom que temos meios simbólicos para fazer isso.”
“Mas é importante que o leque de emoções seja grande. Se só houver programação de violência, por exemplo, não vai ser o meio de extravasar, vai ser o meio de modelo. É importante que haja o programa de violência, assim como o de casamento, como intelectual, o de viagem…”
Identificação
Segundo a professora Maria Virgínia, da UFPR, é fundamental lembrar que o ser humano vive em busca de identificação, seja com situações, pessoas ou características. E são vários motivos que podem levar a este processo.
“Pode ser uma amizade imediata, porque a outra pessoa tem tudo a ver comigo – não apenas no sentido de se olhar no espelho -, mas também por características que eu não tenho, mas gostaria de ter, ou característica que eu abomino, mas de certa forma tenho curiosidade”, diz.
A diferença entre acompanhar um personagem em uma novela, série ou filme, e seguir um personagem de reality show se dá justamente porque a identificação com o último é mais fácil.
“É uma escala: passa pelo cinema, novela até os influenciadores e realities. Os ídolos de 10, 20 anos atrás, eram idealizados. Eram as pessoas mais bonitas, os heróis eram fortes e sobreviventes”, diz Santi, da ESPM.
“Agora, os ídolos da gente precisam ser mais parecidos com a gente. Os influenciadores não são heróis, e as mulheres podem ser maravilhosas, mas elas vão estar em casa, vão ter problemas com os filhos na hora de ir para a escola. São pessoas corriqueiras”, diz o psicanalista.
“Essas pessoas de referência não podem ser elevadas demais a ponto de eu não conseguir me ver nela. Houve uma espécie de humanização dos nossos ídolos.”
Além da identificação com os personagens, a professora de sociologia da Fundação Getulio Vargas, Silvia Viana, inclui outro tipo de identificação que é comum em todos os realities shows: as situações as quais as pessoas dentro dos programas precisam passar.
“O reality show produz uma forma de funcionamento própria do nosso mundo”, diz. “Faz sucesso porque ele reproduz o mundo como ele é e naturaliza isso. O relacionamento que vive sob pressão, uma provação, tudo que implica na concorrência entre sujeitos, a eliminação, são reproduções da nossa estrutura”, diz Silvia.
Ao reproduzir esta estrutura e ilustrar esses conflitos, há ainda o interesse por parte do público em procurar por saídas.
“Por identificação, assistir aos programas também é buscar essas soluções de conflitos que tem características parecidas com os conflitos que eu vivo. Coisas que eu não vivo no meu relacionamento e aparecem ali, podem me abrir perspectivas, por exemplo”, diz a professora Maria Virgínia.
“Geralmente, [o programa] tem um casal e uma das pessoas se interessa por outra, então, tem a questão da traição, da insegurança. Você pode trabalhar isso de alguma forma, se projetando no que está vendo na tela sem que tenha que destruir a sua relação real.”
FONTE: Por G1