No século 15 e início do 16, uma pequena ilha no lago Titicaca era um dos locais religiosos mais importantes da América do Sul.
Reverenciada como o local de nascimento do Sol, da Lua e da dinastia Inca, Isla del Sol (“Ilha do Sol”) atraía peregrinos de toda parte dos Andes.
Há alguns anos, segui os passos deles, pegando um barco na cidade boliviana de Copacabana para atravessar as águas agitadas do lago, que fica a 3.812m de altitude, sendo o único lugar do planeta que um viajante pode “sofrer de enjoo no mar e mal da altitude ao mesmo tempo”, de acordo com o explorador britânico Percy Harrison Fawcett, que o visitou no início do século 20.
Após atracar na costa nordeste de Isla del Sol, segui uma trilha centenária passando por uma série de ruínas incas e pré-incas — tambos (estalagens), santuários, templos, praças, altares e um complexo cerimonial que inclui Titikala, um afloramento de arenito de onde o deus criador dos Andes Viracocha teria gerado o Sol e a Lua.
Fascinado pelos sítios arqueológicos antigos e pela vista da Cordilheira Real coberta de neve à distância, prestei pouca atenção às plantações em socalcos (técnica de cultivo em degraus) que serpenteavam ao longo das encostas da ilha.
No entanto, esta façanha aparentemente simples de engenharia agrícola ajudou os Incas a construir o maior império da história da América do Sul.
Conhecidos como andenes (“plataformas”, em tradução literal), estas plantações em socalcos estão espalhadas pelos Andes Centrais.
Construídos pela primeira vez há cerca de 4.500 anos por culturas antigas de toda a região, eles foram aperfeiçoados pelos Inca, que surgiram no século 12 e eram mestres na adoção e adaptação de técnicas, estratégias e sistemas de crenças de outras sociedades.
Os andenes, diz Cecilia Pardo Grau, curadora da exposição Peru: A Journey in time em cartaz no British Museum, em Londres, foram “uma forma criativa de desafiar o terreno… que permite uma maneira eficiente de cultivar [lavouras]”.
Eles permitiram que as comunidades andinas superassem ambientes desafiadores, incluindo encostas íngremes, solo ralo, temperaturas extremas e oscilantes e chuvas escassas ou sazonais.
Abastecidos por poços artificiais e elaborados sistemas de irrigação, os andenes expandiram significativamente a área de terras cultiváveis.
Eles também conservaram água, reduziram a erosão do solo e — graças aos muros de pedra que absorviam o calor durante o dia e depois o liberavam à noite — protegiam as plantas de geadas severas.
Como ilusão de ótica
Isso permitiu que os agricultores cultivassem dezenas de safras diferentes, de milho e batata a quinoa e coca, muitas das quais não teriam sobrevivido na região.
O resultado foi um aumento dramático na quantidade total de alimentos produzidos.
Além de sua engenhosidade, os andenes também possuem uma qualidade artística, formando vastos padrões geométricos nas paisagens dos Andes.
Alguns se parecem com gigantescas escadarias verdes esculpidas na encosta da montanha, enquanto outros são feitos de conjuntos de círculos concêntricos, chamando a atenção como uma ilusão de ótica.
Um dos mais impressionantes é o sítio arqueológico peruano de Moray, que se assemelha a um anfiteatro natural. Localizado a cerca de 50 km ao norte da antiga capital inca de Cuzco e 3.500m acima do nível do mar, ele demonstra como os andenes eram usados para criar uma variedade de microclimas.
Graças aos vários desenhos, tamanhos, profundidades e orientações dos socalcos, a diferença de temperatura entre o mais alto e o mais baixo é de cerca de 15ºC.
Moray foi descrito como uma “estação de pesquisa agrícola”: amostras de solo de todo o império foram descobertas aqui, e os pesquisadores argumentam que os Incas podem ter usado o local para experimentar práticas como rotação de culturas, domesticação e hibridização.
Técnicas agrícolas sofisticadas, como os andenes, desempenharam um papel vital na expansão do império Inca, que era conhecido como Tawantinsuyu e se estendia por grande parte do Peru moderno, oeste da Bolívia, sudoeste do Equador, sudoeste da Colômbia, noroeste da Argentina e norte do Chile em seu auge.
Um dos relatos mais antigos que temos conhecimento sobre seu uso vem de Garcilaso de la Vega (1539-1616), filho de uma nobre inca e um conquistador espanhol.
Após conquistar um novo território, os Incas começavam a expandir a quantidade de terras agrícolas levando engenheiros qualificados, observou de la Vega em seu livro Royal Commentaries of the Incas.
“Depois de cavar os canais [de irrigação], eles nivelavam os campos e os retificavam para que a água da irrigação pudesse ser distribuída de forma adequada”, escreveu ele.
“Eles construíam socalcos nas montanhas e nas encostas, onde o solo era bom… Desta forma todo o monte foi sendo gradualmente cultivado, as plataformas sendo aplainadas como degraus de uma escada, e todo o terreno cultivável e irrigável sendo aproveitado.”
O terreno recém-expandido era posteriormente dividido em três partes: uma para o imperador Inca; outra para fins religiosos; e uma terceira para a comunidade, cujos lotes eram distribuídos pelas lideranças locais.
Embora não fossem tributados, os agricultores eram obrigados a passar um tempo trabalhando nas terras religiosas e do imperador, assim como nas suas próprias terras.
Técnicas como os andenes eram combinadas com políticas como a mitma, em que as pessoas eram levadas para territórios recentemente conquistados para ajudar a consolidar o controle inca; e a mit’a, uma forma de serviço público obrigatório usado para fornecer mão de obra para construir infraestrutura, incluindo uma rede de estradas com dezenas de milhares de quilômetros de extensão.
Esta abordagem em relação à agricultura, comunidade e organização imperial permitiu aos Incas acumularem grandes excedentes de alimentos para uso durante as secas, inundações, conflitos e outros períodos de escassez.
Estas reservas — que incluíam chuño, batata liofilizada produzida por repetida exposição à geada e ao sol forte — eram mantidas em enormes depósitos chamados qullqas.
Na ausência de uma linguagem escrita, os Incas usavam um sistema complexo de cordas multicoloridas com nós, conhecido como quipu (ou khipu), para administrar os estoques, assim como para manter o controle de população e dados astronômicos.
Alguns acadêmicos acreditam que o quipu pode até ter sido usado para registrar narrativas como histórias, canções e poemas.
Grau argumenta que os quipus — há exemplares em exibição na exposição do British Museum — eram fundamentais para a sociedade Inca.
“Eles herdaram esse conhecimento dos Wari, uma sociedade que existia nas terras altas do sul, 400 anos antes dos Incas”, diz ela.
“Os Incas usavam um sistema decimal: eles tinham um nó diferente para cada número de um a nove, e depois para dezenas, centenas e milhares… o quipu era essencial na forma como o império funcionava e era organizado.”
No fim das contas, os andenes, os estoques de alimentos e os quipus ajudaram os Incas a expandirem constantemente um império que acabou dominando uma grande parte da América do Sul, abrangendo 12 milhões de pessoas e produzindo cidadelas majestosas como Machu Picchu.
Mas a chegada dos conquistadores espanhóis no século 16 provocou a queda dos Incas e o declínio dos andenes.
A violência colonial, as epidemias de doenças europeias e os deslocamentos forçados devastaram as populações indígenas dos Andes Centrais.
Lavouras e práticas agrícolas europeias foram introduzidas e rapidamente se espalharam por toda a região.
No entanto, embora muitos andenes tenham sido abandonados ou caíram em desuso, eles nunca desapareceram por completo.
Com base no conhecimento transmitido ao longo das gerações, muitos agricultores andinos continuam a usá-los hoje e, embora muitas vezes esquecidos pelos turistas, ainda é comum avistá-los em lugares como a Isla del Sol e a região do Titicaca como um todo, o Vale Sagrado perto de Machu Picchu, e o Vale do Colca no sul do Peru, que tem o dobro da profundidade do Grand Canyon.
Nos últimos anos, também houve um interesse acadêmico renovado pelos andenes como uma forma de agricultura sustentável que poderia ajudar o mundo a enfrentar a crise climática, a escassez de água e a erosão do solo.
A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, por exemplo, descreve a cultura andina tradicional como “um dos melhores exemplos de adaptação e consciência dos agricultores do meio ambiente” e destaca sua abordagem sustentável em relação ao uso da terra, gestão da água, proteção do solo e biodiversidade de culturas.
Quatro mil e quinhentos anos após terem surgido, as plantações em socalcos dos Andes parecem estar à frente de seu tempo.
FONTE: Por BBC NEWS