A infectologista Luana Araújo afirmou, em sessão da CPI da Covid desta quarta-feira (2/6), que não sabe por que houve recuo, por parte do governo federal, em nomeá-la para a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19.
Araújo, que posiciona-se publicamente contra o uso da hidroxicloroquina e ao chamado “tratamento precoce”, foi questionada pelos senadores da CPI a respeito dos motivos do cancelamento de sua nomeação.
Ela respondeu que essa pergunta deveria ser encaminhada ao ministro Marcelo Queiroga, que a contratou. Queiroga já foi ouvido pela comissão e foi reconvocado porque suas respostas foram consideradas insatisfatórias. A previsão é que ele volte a testemunhar no dia 8 de junho.
“O que me foi dito é que existia um período entre a criação da secretaria e um apostilamento de cargos, para que minha nomeação fosse publicada no diário oficial. Era para ser numa segunda-feira, não saiu, numa terça, não saiu. Na quarta eu já tinha entendido o que havia acontecido. E fui comunicada que infelizmente (minha nomeação) não iria acontecer”, declarou Araújo.
“O ministro disse que lamentava, mas que meu nome não ia passar pela Casa Civil”, agregou. “Não sei se é esse o processo. Com toda hombridade que ele (Queiroga) teve ao me chamar, ele disse que lamentava mas minha nomeação não sairia e meu nome não seria aprovado.”
Araújo esclareceu que havia elaborado um plano de combate à pandemia baseado em quatro pilares: a vacinação, a comunicação com a população, pesquisa e estratégia (com a avaliação do desempenho do Brasil e de outros países com base em critérios epidemiológicos) e a gestão de recursos.
Ao ser questionada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), Araújo afirmou que seria a única infectologista da equipe que respondia ao ministro Queiroga nos esforços de enfrentamento da pandemia. “O que torna ainda mais grave a não concretização de sua nomeação”, disse o senador.
Randolfe pediu que ela recontasse como foi o dia de sua saída do cargo: “Trabalhei o dia inteiro nesse dia, na tentativa de organizar a estrutura do ministério, quando já havia preocupação com a identificação da variante indiana (do vírus)”, ela respondeu.
“Aí, no final da tarde, eu fui chamada no gabinete e achei que teria a oportunidade de discutir essas coisas, eu tinha acesso bastante livre ao ministro. Quando entrei no gabinete ele falou que tinha optado pela minha nomeação, não duvidada da minha capacidade técnica, pelo contrário, mas minha nomeação não tinha sido aprovada, e precisaria abrir mão de mim. (…) Ele não disse por que e eu também não perguntei, porque a gente sabe como funcionam as questões políticas. (…) O que posso dizer é que (a decisão) não parece ter sido dele. Existia um pesar em abrir mão (da nomeação) porque a gente estava fazendo um trabalho positivo.”
Araújo esclareceu ainda que, no período em que trabalhou no ministério, não sofreu nenhuma interferência em seu trabalho ou foi cerceada de alguma forma e afirmou ainda que, se isso tivesse ocorrido, teria deixado o cargo por conta própria.
Evidências são ‘transparentes’ contra cloroquina, diz médica
Luana Araújo é infectologista, consultora em saúde pública com mestrado na Universidade Johns Hopkins (EUA) e havia sido anunciada, em 12 de maio, como secretária extraordinária de enfrentamento à covid-19, mas teve seu nome retirado apenas dez dias depois.
As circunstâncias desse episódio é o que senadores da CPI da Covid querem esclarecer – a suspeita é de que seria por críticas prévias de Araújo ao tratamento com hidroxicloroquina.
Em seu depoimento (ainda em curso), Araújo afirmou que no curto período em que trabalhou no Ministério da Saúde, nunca teve discussões sobre cloroquina ou sobre o chamado “tratamento precoce” – que ela ressaltou que, do ponto de vista científico, não existe.
Perguntada se achava que a divergência dela quanto ao uso da cloroquina como política de saúde pública no Brasil era responsável por sua saída do cargo, Araújo respondeu:
“Acho que essa pergunta deve ser direcionada ao ministro. A minha posição pública não é uma opinião. Na Medicina a gente tem opinião até substituir por evidências. As evidências são transparentes”.
Mais tarde, agregou que seria a favor de uma terapia precoce se esta existisse. “Quando não existe, não pode se tornar política de saúde pública. Quando disse um ano atrás que estávamos na vanguarda da estupidez mundial, infelizmente mantenho isso em vários aspectos. Não tem lógica, é como discutir de qual borda da Terra plana a gente vai pular. Estamos aqui discutindo algo que é ponto pacificado no mundo inteiro.”
Embora não tenha comentado diretamente as falas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em defesa da hidroxicloroquina, Araújo afirmou que “qualquer pessoa que defende algo sem comprovação científica expõe seu grupo a vulnerabilidades e todo mundo tem responsabilidade sobre o que acontece depois.”
“Temos estudos, nesse caso uma meta-análise feita de forma correta, de estudos de alta qualidade, mostrando que existe aumento da mortalidade com o uso de cloroquina e hidroxicloroquina. Quando você transforma isso em decisão pessoal é uma coisa, quando transformo em política pública é outra. A autonomia médica faz parte da nossa prática, mas não é licença para a experimentação.”
Araújo reforçou posteriormente seu posicionamento sobre o tema. “Embora a gente saiba que o SUS não patrocina a distribuição dos chamados kits covid, sabemos que isso aconteceu fartamente no território nacional, e, se eles fossem úteis, não teríamos os números que teríamos hoje”, afirmou a médica.
“Tem Estados em que, se você cruzar a distribuição do kit com a letalidade da doença, vai ver que ele não teve qualquer impacto.”
O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) trouxe questões sobre o tratamento precoce levantadas por outros médicos que se posicionam a favor desse tipo de terapia.
Girão afirmou haver evidências e estudos que apontam a eficácia dos medicamentos que fazem parte desta terapia e teceu críticas à Organização Mundial da Saúde (OMS) por posicionamentos da entidade contra esses medicamentos.
“Reconheço o sacrifício e os esforços dos meus colegas, mas também sinto a falta de informação deles para embasar a posição que passaram para o senhor. Ninguém está deixando de analisar nenhuma saída, todos estão buscando a solução dentro do que é possível”, afirmou a médica.
Sobre as críticas à OMS, Araújo disse que, ao desconsiderar as posições da entidade sobre o tratamento precoce, deveria ser feito o mesmo em relação ao National Institutes of Health (equivalente ao SUS no Reino Unido), ao Centro de Controle e Prevenção de Doenças (agência americana), à Food and Drugs Administration (equivalente à Anvisa nos Estados Unidos), à European Medicines Agency (agência europeia).
“Todos têm a mesma posição (da OMS) sobre o tratamento precoce”, disse a médica.
‘Ciência não é opinião’
Araújo chamou a atenção do senador Girão para o que considera uma falha cometida por muitos médicos ao avaliar estudos científicos de ler apenas o resumo e a conclusão sem analisar a metodologia empregada.
“É a coisa mais importante, só através dela conseguimos entender se existe algum tipo de viés que talvez nem o autor tenha notado”, disse a médica.
“Ninguém demoniza nenhuma medicação. O que a gente precisa ter claro é que elas têm seu valor quando indicadas na dose correta e para o paciente certo.”
Girão então disse que Araújo estava se posicionando conta a autonomia do médico em prescrever medicamentos conforme considere adequado. A médica esclareceu que é a favor da autonomia, mas sob determinadas condições.
“O uso de medicamentos fora do que indica a bula é parte da Medicina, mas é preciso haver plausibilidade teórica, um conjunto de evidências, a ética e a responsabilização do profissional.”
A médica depois complementou sua posição: “É importante que a gente lembre as pessoas que ciência não é opinião, ciência é método”.
Questionada pelo senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS) sobre quantos pacientes com covid-19 havia tratado, a médica disse que não saberia responder.
“E para nenhum deles eu prescrevi cloroquina, ivermectina, azitromicina, zinco ou vitamina, nada disso. Aliás, vitamina D, nem cheguei a pensar nessa prescrição porque só se deve receitar quando há deficiência comprovada laboratorialmente.”
Heize rebateu dizendo que 28 países adotam esses medicamentos.
“São mais de 200 países, senador”, disse Araújo.
“E estou dizendo que 28 usam…”, respondeu Heinze.
“E os outros não usam”, afirmou a médica.
O senador Heinze criticou a médica porque ela teria falado em “curanderismo” aos médicos que adotam esse tipo de tratamento.
“Falei em neocuranderismo me referindo à adoção de medidas que não são eficazes, principalmente como política pública. Eu acredito em tratamento precoce, mas em tratamento precoce que não funcione, e a gente não tem nenhum.”
‘Não estou aqui sozinha’
O senador Marcos do Val (Podemos-ES) disse ter feito uso do tratamento precoce quando teve covid-19, defendeu esse tipo de terapia e criticou a postura da médica ao dizer que ela estava se colocando diante dos senadores como “a dona da verdade”.
“Eu não sou dona da verdade”, respondeu Araújo. “Não estou aqui sozinha, eu represento uma classe enorme deste país de cientistas muito sérios que a despeito das condições difíceis de exercício da ciência no Brasil conseguem levar com muito custo e esforço o seu trabalho à frente.”
“Quero me posicionar de forma assertiva. Tenho colocado aqui um embasamento técnico condizente com as maiores institiuições especialista do mundo. O senhor tem o direito de questionar, mas o senhor não está questionando a mim…”
Neste momento, a médica foi interrompida pelo senador. “A senhora tem que respeitar os médicos”, disse Marcos do Val.
“Eu respeito meus colegas, senador”, respondeu Araújo. “Mas existe uma diferença entre respeito e responsabilização. Tenho confiança no meu conhecimento e na minha competência, justamente porque eu ouço e presto atenção no que acontece ao redor do mundo.”
Sobre a tese da imunidade de rebanho por contaminação – que não foi adotada oficialmente pelo Ministério da Saúde, mas circulou amplamente até mesmo em falas de Bolsonaro -, Araújo afirmou que “isso não existe e é muito estranho que a gente esteja discutindo esse tipo de coisa”.
“O vírus de RNA tem tendência a sofrer mutações com muita facilidade. Enquanto estamos falando aqui ele está mutando centenas de vezes”, declarou. “A imunidade de rebanho natural do Sars-Cov-2 é impossível de ser atingida. Não é uma estratégia inteligente. Com a vacinação a gente induz uma resposta imune muito mais sólida e em tempo muito mais curto. E com ela a gente atinge a imunização sem sofrimento (pela doença).”
Randolfe Rodrigues mostrou a Araújo um vídeo compilando falas de Bolsonaro em favor da cloroquina e pediu a opinião da médica. Ela disse que não queria politizar um assunto técnico, mas agregou: “Não é possível ouvir um conjunto de declarações de quem quer que seja, e não estou personificando na figura do presidente, sem sofrer um impacto quase que emocional, para além do racional. A mim, como médica e infectologista, educadora em saúde, isso me suscita a ideia de que eu preciso trabalhar mais, informar melhor, me parece que falta informação de qualidade. (…) A mim, me dói.”
Convite à secretaria especial
Araújo afirmou que seu contato com o ministro Marcelo Queiroga começou quando ela foi convidada a assumir a secretaria e que, nos dez dias em que ficou no cargo, manteve contato apenas com ele e com alguns integrantes do ministério.
Questionada se haveria aconselhamento paralelo ao do Ministério da Saúde – tese que tem sido levantada na CPI por senadores críticos ao governo -, ela disse que não se encontrou com ninguém que pudesse fazer parte desse grupo. “Não encontrei com o presidente da República, fiquei praticamente isolada nesse período”, declarou.
Sobre Queiroga, disse que o ministro era “extremamente capaz, competente, orientado pelos valores corretos, da ciência”.
Araújo contou que tentou formar uma equipe própria na secretaria, mas seus convidados resistiram a assumir cargos no governo federal.
“Infelizmente, por tudo o que vem acontecendo, por essa polarização esdrúxula, os maiores talentos dessas áreas não estavam exatamente à disposição para trabalhar nessa secretaria. Não queriam trabalhar (nela).”
Em seu discurso de abertura na CPI, Araújo disse que lhe fora apresentado um “projeto sólido e a necessidade de alguém técnico e competente para conduzir esses trabalhos”.
Sua primeira frase no discurso foi de que seriam necessários 320 dias para se fazer um minuto de silêncio para cada vítima da pandemia no Brasil até agora. “Isso é intolerável e toda pessoa deve fazer o que está ao seu alcance para impedir essa hecatombe.”
Queiroga negou pressão do Planalto
O motivo da saída de Araújo não foi detalhado na época pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, nem pelo ministério, que informou apenas que buscaria “outro nome com perfil profissional semelhante: técnico e baseado em evidências científicas”.
Na ocasião, Queiroga negou que tivesse havido pressão, por parte do Palácio do Planalto, contra a nomeação da médica. Em audiência no Congresso, o ministro afirmou que Araújo não chegou a ser nomeada e agregou que em cargos do tipo “é necessário que exista validação técnica e também validação política, para todos os cargos”.
Reportagem do jornal O Globo, porém, mostrava que Araújo havia se manifestado em suas redes sociais contra o uso da cloroquina e de outros remédios que o governo chegou a promover ativamente como “tratamento precoce”, apesar de as evidências científicas apontarem que esses medicamentos não têm eficácia contra a covid-19 – e podem, ao contrário, trazer efeitos colaterais graves e gerar uma falsa sensação de proteção.
Após o depoimento de Araújo, o ministro Queiroga deverá ser reconvocado para depor à CPI.
O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), afirmou durante o depoimento de Araújo que o recuo na nomeação dela como secretaria “demonstra que o ministro (Queiroga) continua sem autonomia técnica para definir sua equipe”.
O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM) também fez críticas ao governo, afirmando que “não estão interessados em quem está capacitado para gerenciar a crise, estão interessados em quem compactua com o tratamento precoce e a imunidade de rebanho e com a política de colocar goela abaixo a cloroquina”.
O senador governista Marcos Rogerio (DEM-RO) afirmou que a confirmação de Araújo de que ela não teve nenhum contato com o Planalto aponta que existe uma “falsa narrativa” de interferência de um gabinete paralelo na condução da pandemia.
O senador agregou que não é incomum que nomeações como a de Araújo sejam revistas dentro da estrutura governamental. “Apesar da estranheza que se mostra aqui, todos aqui sabem que não existem no Poder Executivo nomeações automáticas”, declarou. “Em todos os cargos há liberdade plena para nomear e exonerar. É uma histeria que se tem praticado dentro do Parlamento quando este ou aquele é ou não nomeado.”
Omar Aziz respondeu que isso não deveria se aplicar para um período emergencial como a pandemia: “Numa guerra alianças são feitas, e estamos em uma guerra”.
FONTE: BBC NEWS BRASIL